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Auta de Souza, a poetisa rediviva

Auta Henriquieta de Souza nasceu em 12/09/1876 em Macaíba, uma pequena cidade do Rio Grande do Norte, no nordeste do Brasil. Era filha de Elói Castriciano de Souza, que trabalhava na área de comércio exterior, e de Henriqueta Leopoldina Rodrigues de Souza, dona de casa. Auta foi poetisa, e sua vasta obra reúne mais de 200 poemas.

Desde a infância, a vicissitude já se mostrava presente, como o seria ao longo de sua vida. Antes de completar três anos de idade, já era orfã de mãe, e em menos de dois anos depois, em janeiro de 1881, desencarnou seu pai, ambos vitimados pela tuberculose, deixando-a só com os seus quatro irmãos, que passaram a ser cuidados em Recife pela sua avó materna, Silvina de Paula Rodrigues, carinhosamente chamada de dna. Dindinha, que foi a sua segunda mãe.  

Como gratidão pelo zelo e carinho, a ela Auta de Souza fez uma homenagem, no poema À Minha Avó: “raio de sol dos meus primeiros dias, gota de luz nas regiões sombrias, de minha vida triste e amargurada, anjo bendito que me refugias nas tuas asas contra a sina irada”.

Ajudando os humildes

Aos sete anos, graças a ajuda de um professor amigo, já sabia ler e escrever, uma proeza para a época. Já denotando a qualidade caridosa de seu espírito, aos oito anos ia ao encontro dos desafortunados e lia para as crianças pobres, para as humildes mulheres do povo, para os velhos escravos. Lia as páginas simples e ingênuas da história de Carlos Magno, livro que corria os sertões ao gosto popular da época, e também levava a eles, a diversão das leituras regionais, dando àquele povo sofrido um pouco de alegria.

“Quando começa a raiar, o dia de amor, eu gosto de contemplar, o coração de uma flor”.

Do poema Flores

A tragédia

Aos dez anos, uma tragédia familiar abate-se sobre ela. Seu querido irmão Irineu, carinhoso e amigo de todas as horas, desencarna vitimado pelas chamas provocadas pela explosão de uma lamparina de querosene, sendo Auta espectadora do terrível acontecimento sem nada poder fazer. O garoto agoniza por longas dezoito horas, e desencarna. Depois, ela diria lamentando a partida do rapaz: “não sei se mágoa mais profunda existe”. 

No colégio, o despertar de sua obra literária

Aos doze anos, inicia os estudos no colégio São Vicente de Paulo em Recife, sob a direção de religiosas francesas, que lhe oferecem primorosa educação: literatura, música, desenho. Além disso, aprende e domina o idioma francês que lhe permite ler no original as obras de Victor Hugo, do poeta Alphonse de Lamartine e de François Fénelon, este último um dos espíritos da codificação que ditaram vários textos para Kardec.

Foi neste colégio que começa a despertar a sua arte literária. Ela estuda, verseja, e ajuda as irmãs da instituição. As adversidades de sua vida fizeram com que escrevesse vários poemas em versos comovidos e ternos, cativando a todos ao seu redor, como nesta frase do poema, Fio Partido: “Fugir à mágoa terrena, e ao sonho que faz sofrer, deixar o mundo sem pena, será morrer?”.

Seu estilo literário é considerado ultrarromântico, porque é carregado de fortes emoções e sentimentalismo, como medo e morte, mas com influência simbolista, ou seja, poemas que tem como tema o amor, o tédio, e a espiritualidade. Segundo o grande poeta Luís da Câmara Cascudo, ela foi, na verdade, a maior poetisa mística do Brasil, pois os seus poemas conduziam a alma até a união com Deus.

Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, professor, escritor e crítico literário a ela se referiu dizendo que “parte de seus poemas encontrou no coração dos simples a mais terna repercussão”.

De volta à terra natal, e o Clube do Biscoito

De volta à Macaíba, em 1893, Auta fez muitas amizades pois era uma pessoa simples e participava das atividades sociais da época. Em 1894, foi fundado na cidade o Clube do Biscoito, associação que reunia os amigos que faziam reuniões dançantes na casa dos associados. A poetisa era uma de suas mais assíduas frequentadoras, nas reuniões declamava versos de seus poetas preferidos. Na ocasião, trazia-se para a apresentação dos convivas a poesia de expoentes na arte, como Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves. Além desses citados nomes, Câmara Cascudo acredita que Auta tenha conhecido as obras de Tobias Barreto, Fagundes Varela, José de Alencar e Joaquim Manoel de Macedo.

Publicando os seus poemas

Aos 18 anos, passa a escrever para a revista Oásis, seus poemas foram também publicados no jornal O País do Rio de Janeiro.

Aos 19 anos, colabora com os seus versos regularmente no conhecido jornal A Tribuna de Natal, na Revista do Rio Grande do Norte e no jornal A República. Mais tarde escreve para a revista Oito de Setembro, periódico religioso, católico e muito popular.

Vencendo o preconceito

Além das atribulações vividas durante a sua breve estada na matéria, Auta de Souza teve ainda que enfrentar o preconceito por ser negra, e ainda porque escrevia profissionalmente em uma sociedade cuja atividade era exercida quase que somente por homens. A crítica não dava importância às mulheres, que segundo os padrões vigentes à época, deveriam exercer a função de base da família, educando os filhos para que estes se tornassem pessoas de bem. Com seu incontestável talento e personalidade, Auta conseguiu derrubar essas barreiras.

A doença

Em 1890, aos 14 anos, é diagnosticada com tuberculose, chamada naquele tempo de “peste branca”. A enfermidade já começava a apresentar os seus sintomas. Mas a grandeza de seu espírito mais uma vez se revela, ao continuar a realizar o seu trabalho, ensinando as primeiras noções de religião às crianças. Naquela época a tuberculose não tinha tratamento, e a doença avançava implacavelmente. Os medicamentos para o tratamento da terrível enfermidade começaram a chegar ao Brasil na década de 1940, mas somente na década de 1970 o tratamento passou a ser mais eficaz.

Decepção amorosa

Por volta de 1895, aos 19 anos, Auta enamora-se de João Leopoldo da Silva Loureiro, promotor público de sua cidade natal, mas seus irmãos preocupados pelo fato de o rapaz não ser de confiança e ainda pela sua enfermidade, temendo que a mesma poderia afetar os filhos que poderiam vir a ter, fazem pressão para que ela deixe o rapaz, e assim ela o faz, após um ano e meio de namoro. Esse rompimento traz uma grande frustação a ela, adicionando mais um fato negativo à sua vida. Pouco tempo depois, João Leopoldo morre vitimado pela tuberculose.

O livro horto

Em 1900 é publicado o seu livro de poesias chamado Horto, com prefácio do famoso poeta Olavo Bilac. Em seu conteúdo, os poemas retratam muita dor, em função de sua vida difícil, mas também a sua enorme fé. O livro é um grande sucesso e com tiragem inicial de 1.000 exemplares, esgotou-se em 60 dias. O título da obra é uma clara referência que a autora fez ao jardim do Getsêmani, o horto de onde se extraia as oliveiras, local onde Jesus foi com os seus discípulos após a última ceia a fim de orar. A publicação teve ainda mais quatro edições: 1910, 1936, 1970 e 2000.

Em um trecho de um dos poemas nele presentes, chamado “Ao pé do túmulo”, Auta parecia pressentir a morte próxima: “eis o descanso eterno, o doce abrigo das almas tristes e despedaçadas; eis o repouso enfim; e o sono amigo, já vem cerrar-me as pálpebras cansadas”.

O desencarne

Vencida pela doença, Auta de Souza desencarna em Natal em 7 de fevereiro de 1901, retornando em paz à pátria espiritual sendo recebida por entidades amoráveis que vem ao seu encontro. Tinha apenas 25 anos de idade.

No enterro, discursaram representantes da comunidade e intelectuais da região, dirigentes de jornais e de instituições literárias. Auta de Souza jamais queixou-se de nada, foi um espírito que em vida seguiu as palavras de Cristo quando este dizia: “bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados”.

Era uma pessoa dotada de uma grande capacidade de resignação, pois em seu íntimo sabia que estamos todos aqui de passagem, que a verdadeira vida é a vida espiritual, e que o sofrimento burila o espírito e ajuda-o na sua evolução, porque assim é que resgatamos nossas dívidas do passado. Então, ao resignar-se, tornou as suas provas mais suportáveis. Em seu epitáfio está escrito: “longe da mágoa, enfim no céu repousa, quem sofreu muito e quem amou demais”.

Homenagens póstumas

Em 1936, a academia norte-rio-grandense de letras dedicou-lhe a poltrona 20, como reconhecimento à sua obra.

Em 12 de setembro de 2008, durante as comemorações dos 132 anos do nascimento da poetisa, é lançado o documentário “Noite Auta, Céu Risonho”,produzido pela TV Universitária em parceria com o Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses.

A Federação Espírita Brasileira tem catalogadas 13 instituições espíritas, em oito estados brasileiros, que levam o seu nome.

Auta de Souza e Chico Xavier

O primeiro contato feito por Auta de Souza, do plano espiritual, ocorreu trinta e um anos após o seu desencarne. Em uma certa ocasião, em 1932, Chico Xavier estava fazendo as suas habituais orações quando aproximou-se o espírito de uma jovem, irradiando intensa luz, e ditou para ele um lindo poema chamado “Nossa senhora da amargura”, cujo início reproduzimos aqui: “mãe das dores, senhora da amargura, eu vos contemplo, o peito lacerado, pelas mágoas do filho bem-amado, nas estradas da vida ingrata e dura, existe em vosso olhar tanta ternura…”.

Depois, Emmanuel disse a Chico que o amorável espírito era Auta de Souza. No primeiro livro do médium mineiro, Parnaso de Além-Túmulo, de 1932, encontram-se alguns poemas de Auta, escritos no plano espiritual.

Em 1976, Chico psicografou o segundo livro da poetisa, Auta de Souza, a gentil mensageira do amor”, obra trazendo mais alguns poemas da autora. Neste livro, Chico afirma que sentia que Auta de Souza estava acompanhada de um espírito bastante elevado, que faz parte da falange que colabora com Celina, o sublime espírito que trabalha junto à Maria de Nazaré, a veneranda mãe de Jesus.

Alguns sonetos publicados no citado livro:

  • Exortação: “tu que vives na paz e na abastança, lembra que há muita lágrima dorida. Leva ao que sofre um raio de esperança, minorando as torturas da vida”.
  • Instruções da Vida: “ofensa, pedrada, espinho, injúria, maldade ou lama… Tudo vence no caminho, o coração de quem ama”.
  • Memórias da Vida: “tribulações da alma aflita? Esquece fazendo o bem, Deus é bondade infinita, não desampara a ninguém!”.

Caravana Auta de Souza

Por volta de 1948, em comunicação mediúnica, Auta orienta Divaldo Franco a fundar a Caravana de Auxílio aos Necessitados, que acontece um ano depois, e em sua homenagem passa a se chamar Caravana Auta de Souza. A obra é voltada para o atendimento a idosos, doentes e inválidos por meio de doações de cestas básicas, remédios, cobertores, agasalhos e atendimento médico. Hoje são 500 famílias atendidas no complexo da Mansão do Caminho, esta fundada em 1952.

Campanha da Fraternidade Auta de Souza

Em 3 de fevereiro de 1953, na Federação Espírita do Estado de São Paulo, é fundada A Campanha da Fraternidade, sob orientação de mensagem mediúnica ditada por ela, mais tarde denominada Campanha da Fraternidade Auta de Souza.

Hoje, voluntários vão aos prédios residenciais deixando caixas para que sejam depositadas as doações de roupas, sapatos e outros produtos. Depois, as mesmas são recolhidas e entregues na sede da FEESP para posterior entrega. Muitas casas espíritas realizam trabalho semelhante, por meio da distribuição de cestas básicas.

Importante salientar que ao contribuir, os visitados estão tendo a oportunidade de praticar a caridade e ao mesmo tempo o espiritismo passa a ser cada vez mais divulgado junto a esses colaboradores. A campanha ganhou tanta notoriedade e foi tão bem aceita, ao ponto de hoje estar sendo realizada com sucesso em outros países.

Em 1957, é criado o Concafras-PSE, Confraternização das Campanhas de Fraternidade Auta de Souza – Promoção Social Espírita, evento hoje internacional, que reúne nos dias do carnaval trabalhadores de casas espíritas de todas as partes do país para estudar e trocar experiências.

Trabalho no plano espiritual

Além de suas atuações em atividades já citadas neste artigo, no livro “O Paulo de Tarso dos Nosso Dias”a autora Ana Maria Spranger narra uma interessante passagem vivida por Divaldo Franco que mostra assim o notável trabalho realizado por Auta de Souza no plano espiritual.

Certa feita em desdobramento, o médium baiano segue com Auta em tarefa no invisível e vão a uma região umbralina, local de muito sofrimento, onde se ouvem gritos de desespero. A caravana é chefiada pelo notável espírito Isabel de Aragão (ver artigo neste site, “Isabel de Aragão, uma rainha serviço do bem”), na qual equipes de socorristas atendendo as ordens da veneranda entidade, recolhem muitos dos que clamavam por socorro, e que se mostravam realmente arrependidos. Divaldo afirmou que estar naquele local o fez recordar da obra de Dante Alighieri “A Divina Comédia” em sua primeira parte “O Inferno“. Tocado pelas cenas, pergunta a Auta de Souza para onde vão os espíritos que estavam sendo recolhidos, a o que qual ela responde: “muitos são atendidos nos agrupamentos espíritas existentes na Terra e depois são levados a estâncias outras na espiritualidade. Não te esqueças, Divaldo, de que somos todos nós amparados pela misericórdia do Pai celestial”.

Auta de Souza sempre foi uma moça simples, nem mesmo a saúde frágil e os percalços de sua vida impediram que ela fosse sempre abnegada e generosa com os desafortunados e os aflitos. Tinha um corpo débil, mas sendo um espírito forte e determinado, expressou a sua sensibilidade nas letras e na prática da caridade, virtude essa que continua a exercer exemplarmente no plano espiritual.

Por Gilson Tadeu Pereira 

Bibliografia:

  • “Auta de Souza, a Gentil Mensageira do Amor”, de Auta de Souza em Psicografia de Chico Xavier.
  • “Divaldo Franco, o Paulo de Tarso de Nossos Dias, de Ana Maria Spranger.
  • “Horto”, de Auta de Souza.
  • “No Mundo de Chico Xavier” de Professor Elias Barbosa.
  • “O Consolador”, Revista Semanal de Divulgação Espírita.
  • Federação Espírita do Estado de São Paulo, Departamento de Assistência Social
  • Centro Espírita Auta de Souza (Araxá/MG).
  • Auta de Souza Centro Espírita (São Paulo/SP). 

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